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Porque há outros Natais...
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Porque há outros Natais...
FELIZ NATAL, GUGA!
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Havia um mundo para lá das luzes da avenida, recheado de sombras, onde
residiam os vencidos da vida. As estatísticas mostravam-se arredias, pouco ou
nada sensíveis com tal gente, que só servia para atrapalhar as contas duma
qualquer folha de Excel. Mas, por mais que inventassem novas borrachas, novas
formas de subtrair, aquele mundo existia, pleno de grandezas e misérias. Ali,
no patamar mais baixo da existência, povoado por um batalhão de desistentes
semi-adormecidos, havia corações a palpitar, gente que, nos confins da alma,
teimava em sonhar com melhores dias.
Guga tentou manter-se agarrado ao sono, num exercício quotidiano
esculpido na prática da sobrevivência. O despertar da grande colmeia, numa
correria desenfreada, nada lhe trazia de bom, antes pelo contrário. Àquela hora
nunca davam nada e, do seu rasto, ficava apenas o perturbar do parco descanso
concedido pela díspar fauna noctívaga. Tentou dormitar, mas não conseguia.
Levantou-se, a custo, e esgueirou-se para os lados do Dragão Vermelho, reles
bar de engate a preços acessíveis. De vez em quando o pessoal da limpeza, gente
do bairro, deixava-o esgueirar-se até aos sanitários, que tresandavam a urina,
e por lá saciava as necessidades mais prementes do corpo. Por vezes olhava-se
ao espelho, mas era raro, só o fazia quando se sentia capaz de enfrentar os
seus fantasmas.
- Despacha-te, Guga, que o patrão pode aparecer por aí!
Por ali ainda tinha nome, ainda que adaptado às circunstâncias, mas só
ali. Do outro, associado a outras vivências, de há muito lhe tinha ocultado o
rasto, embora, quando o fundo do poço ficava mais à vista, se insinuassem as
memórias. Saiu, com um aceno, o pessoal dali nada mais lhe exigia. Sabiam bem
que, na vida, há um limiar que a todos pode driblar.
Ao fim da tarde, quando a roda da vida parece endoidecer, Guga começou
a estranhar. O movimento era o de sempre, gente apressada por todo o lado, mas
naquela tarde havia algo diferente, como se a pressa ganhasse contornos de
vida, para lá dos gestos mecânicos. Continuava a haver pressa, mas esta era
diferente. Talvez fosse a expressão dos rostos, talvez os gestos mais soltos,
como que alheados das grilhetas, talvez fosse tudo isso ou qualquer outra coisa que lhe escapava. O certo é que, apesar de apressadas, as pessoas pareciam
transportar algo de precioso dentro de si. Até as moedas, habitualmente escassas,
pingavam na sua caixa com outra intensidade.
As ruas foram ficando vazias, mas mesmo os mais retardatários
apresentavam aquele estranho brilho nos olhos, como se de repente descobrissem
que, na sua vida, houvesse algo que valesse a pena. Guga estranhava, mas não
entranhava. E, às tantas, com a rua às moscas, levantou-se do seu poiso diurno,
passou pelas traseiras do Clementina, onde uma empregada, de modo furtivo, lhe
costumava dar umas bifanas, e dirigiu-se, sem qualquer pressa, para o beco
onde, por entre cartões, sacos de plástico e um ou outro cobertor, aconchegava
a sua solidão.
Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores,
lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a
indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se,
de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada
dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do
beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
- Feliz Natal, Guga!
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Agostinho Craveiro
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