quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

CONTO DE NATAL

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RABISCOS DE NOVOS NATAIS
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Todos os dias se levantava à mesma hora. Deixava-se envolver pelo jacto de água fria, fazia a barba, preparava um café instantâneo e comia uma fatia de pão barrada com planta. Depois, cuidadosamente, pegava nos anúncios de jornal, já devidamente sublinhados, e mergulhava no purgatório, quantas vezes inferno, do lado negro da vida.
O seu currículo era ele próprio, o parco dinheiro não era NOS nem MEO, era seu. Medido ao cêntimo, diga-se, habituado que estava ao senhor Negaleva. Mas insistia.
Por mais que se esforçasse, por mais que sorrisse, a filosofia Negaleva parecia a verdade suprema, tatuada nos mil rostos da urbe, sonâmbulos sem qualquer causa, a não ser a sobrevivência. E, quase sem se dar conta, começou a soçobrar, a render-se a evidências, prescritas em receitas, por quem vive para lá do muro. A culpa era sua, diziam, e começava a acreditar.
Num fim de tarde, já quase sem fôlego, refugiou-se nas escadas dum qualquer centro comercial. Não via nada, não ouvia, apenas lhe batia à porta o desespero, a vontade de desistir. Ainda tentou esbracejar, invocando as palavras de Torga...
De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.
...mas a dor era demasiado funda, a dignidade esvaía-se.
De repente, rompendo as densas camadas de nevoeiro que o envolviam, uma voz delicada, despida de artifícios, fez-se ouvir:
- Mãe, aquele senhor parece perdido. Não vês?
As palavras podem ter múltiplas facetas, mil e um rostos, mas naquele momento, para ele, eram as palavras certas. Levantou-se, sorriu para o miúdo e piscou-lhe o olho. Depois, com gestos cuidados, sacudiu o pó das calças, ajeitou o casaco e seguiu. Tal como dizia o poeta, a honra era lutar, mesmo com pouca esperança de vencer.
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Agostinho Craveiro
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1 comentário:

Guilherme Duarte disse...

Muito bem senhor professor está fixe a fotografia é muito linda.PARABÉNS